Alfred Hichcock
"A escrita de Bénard, costurada em digressões permanentes, parêntesis e alvéolos, mostra, além disso, como a palavra é inseparável da memória."
José Tolentino Mendonça
Se Eu Seria Personagem
Uma leitora minha, que faz o favor de ser minha amiga, como se dizia em português servil, perguntou-me esta semana, com algum enleio, se eu agora me ia voltar a voltar só para crónicas de cinema.
Descansei-a. Lembrei-lhe que, pelas novenas de Novembro, me tinha dado no goto escrever três amados filmes, que estão ai para se ver. O criminoso volta sempre ao local do crime, mas raramente o reconstitui como morada permanente. Ela que me voltasse a ler em Dezembro e ia encontrar-me em quartos escuros, mas não no escuro do cinema.
Mas quando abri a porta do quarto escuro-ou o quarto escuro abriu a porta quando me fechou a mim-quem me salvou ao caminho, de tal modo que lhe não pude escapar?
Sir Alfred Hitchcok. Ele mesmo, o cineasta. Juro que não premeditei. Juro que não quis enganar nem os leitores, nem a minha amiga. Mas há coisa alguma a fazer se certo dia… Certo dia, mais do que outros quaisquer, são os incertos dias que temos atravessado, distraídos a ranger os dentes ou a observar a lei de Lynch. « Tudo são perigos, mesmo o que semelha necessário consolo», escreveu Guimarães Rosa, depois de pedir à morte para não o enlouquecer mais. « Ah, ninguém sabe quão terrível é a loucura dos mortos. Mortos-isto é-os que ainda dormem.» … Quando não podemos trocar com ninguém e quando a chuva é o nosso único, absurdo, mas irremediável lugar, estamos perto de saber que não há nenhuma coincidência entre o olhar com que nos vemos e o olhar que o próprio espelho nos devolve.
Então pode voltar-se a esperar para o resto da vida. Porque não somos personagens e pode-se sempre voltar para o fim da ida, do fim da vida. Nosso começo, começo dela. Como nos espantaremos quando virmos tudo do outro lado.
João Bénard da Costa, Crónicas: Imagens Proféticas e Outras, Assirio & Alvim
"A escrita de Bénard, costurada em digressões permanentes, parêntesis e alvéolos, mostra, além disso, como a palavra é inseparável da memória."
José Tolentino Mendonça
Se Eu Seria Personagem
Uma leitora minha, que faz o favor de ser minha amiga, como se dizia em português servil, perguntou-me esta semana, com algum enleio, se eu agora me ia voltar a voltar só para crónicas de cinema.
Descansei-a. Lembrei-lhe que, pelas novenas de Novembro, me tinha dado no goto escrever três amados filmes, que estão ai para se ver. O criminoso volta sempre ao local do crime, mas raramente o reconstitui como morada permanente. Ela que me voltasse a ler em Dezembro e ia encontrar-me em quartos escuros, mas não no escuro do cinema.
Mas quando abri a porta do quarto escuro-ou o quarto escuro abriu a porta quando me fechou a mim-quem me salvou ao caminho, de tal modo que lhe não pude escapar?
Sir Alfred Hitchcok. Ele mesmo, o cineasta. Juro que não premeditei. Juro que não quis enganar nem os leitores, nem a minha amiga. Mas há coisa alguma a fazer se certo dia… Certo dia, mais do que outros quaisquer, são os incertos dias que temos atravessado, distraídos a ranger os dentes ou a observar a lei de Lynch. « Tudo são perigos, mesmo o que semelha necessário consolo», escreveu Guimarães Rosa, depois de pedir à morte para não o enlouquecer mais. « Ah, ninguém sabe quão terrível é a loucura dos mortos. Mortos-isto é-os que ainda dormem.» … Quando não podemos trocar com ninguém e quando a chuva é o nosso único, absurdo, mas irremediável lugar, estamos perto de saber que não há nenhuma coincidência entre o olhar com que nos vemos e o olhar que o próprio espelho nos devolve.
Então pode voltar-se a esperar para o resto da vida. Porque não somos personagens e pode-se sempre voltar para o fim da ida, do fim da vida. Nosso começo, começo dela. Como nos espantaremos quando virmos tudo do outro lado.
João Bénard da Costa, Crónicas: Imagens Proféticas e Outras, Assirio & Alvim
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