sexta-feira, 30 de março de 2012

O livreiro insolente



«A poesia tem justificada má fama. Chamar poeta a alguém, no Parlamento ou no Estádio da Luz, é maior insulto do que chamar intelectual a Pacheco Pereira, como fez Valentim Loureiro num dia em que se achou mais pachorrento. E temos que convir que, se “ser poeta é” o que Florbela Espanca diz que é e os Trovante andam por aí a “dizê-lo, cantando, a toda a gente”, compreende-se que assim aconteça.
Imagine-se agora que, num determinado “país de poetas”, um insolente livreiro decide abrir uma livraria exclusivamente dedicada à poesia. Era bem feito que lhe chamassem poeta, ou ainda menos. Foi o que aconteceu. Ao fim de mais de três anos a juntar e vender ociosidades numa obscura rua do Príncipe Real, em Lisboa, a livraria “Poesia Incompleta” fechou ontem portas. Ainda por cima sem dívidas, o que hoje é coisa ainda mais insultuoso do que “poeta”.
Alguém deveria ter explicado ao jovem empreendedor Mário “Changuito” Guerra que a única forma de manter durante três anos uma livraria exclusivamente dedicada à poesia e chegar ao fim com uma pequena fortuna é começando com uma grande fortuna. Não foi, obviamente, o caso.
Anunciou o livreiro que irá doar (ou doer, não sei) os milhares de volumes que lhe sobram nas prateleiras ao omniministro Relvas. Só que, tal como “assustar um notário com um lírio branco”, pôr Miguel Relvas ao alcance de Kavafy, Camões e Rilke cai decerto sob a alçada da lei antiterrorista.»

Manuel António Pina (in) Jornal de Notícias, 29.03.12

domingo, 25 de março de 2012

Antonio Tabucchi 1943-2012




Post Scriptum
Uma baleia vê os homens

Sempre tão atarefados, e com longas barbatanas que agitam com frequência. E como são pouco redondos, sem a majestosidade das formas acabadas e suficientes, mas com uma pequena cabeça móvel onde parece concentrar-se toda a sua estranha vida. Chegam deslizando sobre o mar mas não nadam, quase como se fossem pássaros, e infligem a morte com fragilidade e graciosa ferocidade. Permanecem longo tempo em silêncio, mas depois entre eles gritam com fúria repentina, com um amontoado de sons que quase não varia e aos quais falta a perfeição dos nossos sons essenciais: chamamento, amor, pranto de luto. E como deve ser penoso o seu amar-se: e áspero, quase brusco, imediato, sem uma macia capa de gordura, favorecido pela sua natureza filiforme que não prevê a heróica dificuldade da união nem os magníficos e ternos esforços para a realizar.
Não gostam da água e têm medo dela, e não se percebe porque a frequentam. Também eles andam em bandos mas não levam fêmeas e adivinha-se que elas estão algures, mas são sempre invisíveis. Às vezes cantam, mas só para si, e o seu canto não é um chamamento, mas uma forma de lamento angustiado. Cansam-se depressa, e quando cai a noite estendem-se sobre as pequenas ilhas que os transportam e talvez adormeçam ou olhem para a lua. Vão-se embora deslizando em silêncio e percebe-se que são tristes.

«Mulher de Porto Pim» (Lisboa, 1985)
(1.ª edição italiana, 1983)

quarta-feira, 21 de março de 2012

Uma oferta de Daniel Gonçalves. Hoje, Dia Mundial da Poesia, Aniversário da SolMar.

a casa dos livros (com vários esboços)


(um esboço)

como uma ilha de luz
na floresta densa
do silêncio

a casa dos livros
guarda a fórmula
da eternidade


(outro esboço)

onde antes cabia apenas
uma pedra

uma casa como uma arca
contra o esquecimento

traçada a branco
para a imensidão
das palavras

(ainda outro esboço)

todos os livros precisam de um colo
alinhado contra a correnteza
do tempo


(ainda outro)

com todos os livros do mundo
podias erguer do nada

uma cidade perfeita


(e outro ainda)

os livros não cabem em
nenhuma casa


Daniel Gonçalves

terça-feira, 20 de março de 2012

Pátria Utópica - Excerto da apresentação por Pilar Damião



«No Portugal do século XXI, nesta era incerta e inconstante, de crise económica, mas também social e política, na era onde os imperativos tecno‐económicos colonizam as esferas do mundo da vida, onde o défice democrático é cada vez maior, torna‐se crucial reavaliar a influência dos intelectuais em movimentos que sustentam a liberdade e dignidade humana. Isto significa que, o intelectual tem de se desprender, utilizando as palavras de T. Adorno, do kitsch oficial, mas também não pode preconizar o papel de mero “intérprete cultural” como Z. Bauman afirma. Ora, considerando, a cultura do discurso crítico e o compromisso com a transparência, com os valores cosmopolitas, com as liberdades humanas, o intelectual irá certamente, estimular debates que irão animar a civitas e proporcionar uma esfera pública incubadora de uma democracia deliberativa. Desta forma, esperamos que o Grupo de Genebra, que este Grupo de intelectuais autónomos, com sua vocação individual, energia, força e persistência continue a propor, à nossa Pátria ‐ agora esvaziada de sentido crítico e esperança ‐ novas utopias.»

Ponta Delgada, 16 de Março, 2012
Livraria Solmar
Pilar Damião de Medeiros

Excerto da apresentação do livro
Pátria Utópica: O Grupo de Genebra Revisitado
António Barreto, Ana Benavente, Eurico Figueiredo, José Medeiros Ferreira
e Valentim Alexandre

domingo, 4 de março de 2012