sábado, 29 de março de 2014

O último adeus ao império





O último adeus ao império

...Olhou para o mar e jurou, nunca mais ninguém me expulsa de lado nenhum, esta vai ter de ser a minha terra.

Dulce Maria Cardoso, O Retorno

Vamberto Freitas

Vamos celebrar em poucos dias os 40 anos do 25 de Abril – a libertação de uns e a dor de outros. Não haverá nada de mais cruel na reestruturação revolucionária de uma sociedade do que esquecer algumas das suas vidas que mais sofreram com tais vendavais. Repito aqui uma confissão muito pessoal: para mim, que vivia um oceano e um continente imenso à distância de Lisboa, foi, sem que eu me apercebesse imediatamente de tal turbilhão pessoal, um dia que mudou todo o meu destino, tanto dentro da América como depois no meu regresso definitivo à nossa terra. Digo isto para dizer de seguida: celebro sempre a grande transformação da sociedade portuguesa como um acontecimento que me trouxe tudo o que sonhara naqueles anos de faculdade e politização à esquerda, como convinha à maioria da minha geração do Vietname (de onde me livrei, ao contrário de muitos com a minha idade à época), e que me abriria as portas para que eu pudesse voltar a viver com dignidade no meu país de nascença. Essa é outra história, a minha e a de milhares de conterrâneos meus,e não cabe por enquanto neste espaço. Enquanto eu me incluía entre os cidadãos em euforia e liberdade reconquistada, outros seriam em poucos meses rotulados de “retornados”, mal olhados e discriminados como se de um grupo marginal e de todo inconveniente se tratasse, alojados em hotéis, pensões ou em casas de familiares, os seus contentores amontoados em Alcântara com o que lhes restava de uma vida, por vezes de gerações, ao serviço de pátria nas terras distantes. Não tinham nada a agradecer ao golpe militar em Lisboa, foram as suas vítimas inesperadas; não eram “colonialistas”, eram na sua grande maioria famílias que haviam deixado a miséria portuguesa para reconstruir as suas vidas “no país dos outros”, como diria o grande poeta moçambicano Rui Knopfli noutro contexto e forma, tinham lançado novas raízes, e tinham, uma vez mais, na sua vasta maioria, reconstruido satisfatoriamente vidas remediadas nos trópicos sem nunca pensarem que seriam convidados a abandonar tudo ou a morrer mesmo às mãos de novos poderes sem imaginação naquele momento escaldante de interesses próprios. Que esses mesmos trópicos aceitam hoje novas ondas de emigração lusa exactamente para retomarem projectos de interesse nacional é de uma ironia mais do que cruel para nós – é vergonhoso, degradante e injusto num país que “pertence” novamente a um suposto grande bloco de nações, também ironicamente intitulado de União Europeia. Que união, que prosperidade, e que futuro nos esperava, não descontando obviamente o que de bom também nos veio da nova aventura no continente a que, pelo menos geograficamente, pertence Portugal.

O breve introito aqui tem a ver com um romance que li tardiamente, mas agradeço a quem mo trouxe à minha atenção, ficando eu a saber que vinha directamente ao encontro das minhas temáticas ficcionais preferidas, ou seja a peregrinação do nosso povo nas mais variadas circunstâncias e geografias durante todo o século passado: O Retorno, de Dulce Maria Cardoso, publicado originalmente em 2011 e depois numa terceira edição o ano passado, e que também acaba de ser lançado na França por razões, suponho, muito parecidas com as nossas, a Argélia dificilmente sairá da sua memória – o regresso após a aventura colonialista em África de centenas de milhares de cidadãos a uma terra que haviam há muito deixado e os seus filhos que de cá só a conheciam, como aliás se refere mais do que uma vez neste magnífico romance, dos mapas da escola ou das histórias de pais e avós. Estamos, no tempo real e diegético destas páginas, em Luanda e Lisboa, em 1975, cujos dias, esses, quase todos conhecem ou lembram com fervor ideológico, ou então o sofrimento da incerteza quando todo um mundo se desmorona à nossa volta. Genialmente – uso a palavra sem quaisquer reticências neste caso – a autora opta por um jovem narrador de 15 anos de idade, de nome Rui, que nos conta toda história enquanto “reside” no Hotel do Estoril, não pelo luxo mas simplesmente porque tinha sido também escolhido pelas autoridades como albergue parcial dos recém-chagados a Lisboa com pouquíssimos escudos na algibeira. Pela sua idade e pelo seu espanto do que lhe acabava de acontecer na vida na companhia de sua mãe e irmã enquanto esperam ansiosamente pelo pai que havia sido preso pelas novas forças de segurança angolana, Rui é um imparável turbilhão de palavras e conflitos interiores, a raiva que sente só temperada pelos afazeres diários de um adolescente com outros na mesma condição, e pela sua lenta descoberta do país que para ele havia sido só uma abastração longínqua. Creio ter havido mais uma razão para que a voz desta fulgurante narrativa seja a de Rui, é um modo de eliminar a “ideologia” da raiva, que se tornaria, por certo, uma vociferação violenta de qualquer adulto com a vida desfeita – essa inevitável gaveta do romance vem-nos de modo bem mais ameno quando nos é relatado a fala que ele ouve e transmite dos adultos à sua volta. É tempo de todas as memórias, de tudo o que haviam vivido numa casa mais ou menos humilde em África, dos amigos de paradoiro agora desconhecido, das alegrias e tristezas de vidas por entre a aventura constante e, assim mesmo a saudade da metrópole à distância, a referência sempre presente nos dias em que ainda não adivinhavam a sua sorte decidida por acontecimentos e personalidades históricas desconhecidas até à inevitabilidade do fim do império. Sim, os personagens reais são referidos aqui, e o leitor não se surpreende dos termos utilizados para os descrever, muitos deles ainda vivos e no activo entre nós. De resto, é o humor imparável, que também aproxima o leitor alheio à experiência real vivida e sofrida por todos estes personagens.

Mas a minha irmã – diz Rui ao chegar ao fim da sua aventura de desalojado, a narrativa estando prestes a encerrar – ainda não vai para universidade, inventaram uma coisa que se chama serviço cívico e é o que a minha irmã vai fazer este ano, a minha irmã e o namorado, o besugo da metrópole que ainda nem está na universidade e já parece um doutor. A minha irmã deve pensar que se namorar com um besugo de cá deixa de ser retornada, só mesmo uma rapariga para pensar numa coisas dessas... O Gegé e o Lee também não vão acreditar que aqui na metrópole as famílias vão à matinée ver filmes como a Emmanuelle, aposto que nem no Brasil nem na África do Sul acontece isso, deve ser uma das poucas coisas que a metrópole tem melhor...”

Autora/narrador, texto, contexto. Suponho que Dulce Maria Cardoso fala de si neste romance, transfigurada numa voz masculina, pois devia ter a mesma idade do Rui aquando do seu regresso à “metrópole”. Portugal nunca entendeu, ou se importou, com a dor dos seus emigrados “voluntários”, muito menos com a dor destes “retornados”, mais de meio milhão de seres humanos a braços naquele dramático momento histórico com todos os seus mundos caídos, e em dias revolucionários que lhes manifestavam só desconfiança e acusações injustas de toda ordem, esquecendo-se os alguns militares protagonistas do 25 de Abril que foram eles os primeiros colaboradores de um Estado senil e sem uma consciência empática do que tinha feito à sua gente, dentro e fora do pequeno território nacional. Num outro texto citei a autora quando numa entrevista literária diria ao seu interlocutor que só em 2010 começou a admitir certo sentimento de pertença a Portugal, mas ainda não estava totalmente certa disso. Grande e generosa escritora – se fosse eu, a rejeição seria para sempre após a recepção que um país em delírio raivoso me tinha dispensado.

A menção de dois países aparece continuamente nestas páginas: América e Brasil, que um jovem narrador já imaginava como sendo a salvação e regeneração dos seus, e como comprova a nossa história. É para aí que vamos quando mais nada é possível ou viável portas adentro. Acabam eles por ficar, e a sua razão é também implacável – fariam finalmente de Portugal a sua incerta e nova ou ancestral pátria, fariam dela o seu último poiso. O sucesso da sua reintegração não se deve a quem os recebeu, deve-se à sua coragem, força, inteligência e iniciativa.

Antes do presente volume, Dulce Maria Cardoso já tinha publicado Até Nós, O Chão dos Pardais, Os Meus Sentimentos e Campo de Sangue. Acaba de publicar este ano os contos de tudo são histórias de amor. O Retorno, pelo que li a este respeito também, é ainda hoje mais reconhecido no estrangeiro do que entre nós. Entendo isso, infelizmente.

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Dulce Maria Cardoso, O Retorno (3ª edição), Lisboa, Tinta-Da-China, 2013.

 

segunda-feira, 24 de março de 2014

Os Livros que nos chamam

 
 
 

Há um tipo peculiar de livros que nos chamam nas livrarias. É esse um dos grandes argumentos a favor das livrarias.

Sem elas seria impossível ouvir essa voz que nos faz comprar livros que nunca contávamos encontrar, nem procurar, e muito menos comprar. Se "entrar" numa livraria electrónica, como a Amazon, eu sei o que procuro e através dos mecanismos de busca encontro livros que são próximos dos que procuro, mas não tenho aí verdadeiras surpresas. Posso comprar com contentamento, mas não descubro.

Nas livrarias descubro, embora infelizmente cada vez menos nas livrarias portuguesas, quase todas iguais, cheias de papel pintado com o mesmo grafismo, o mesmo estilo de capas e com os livros razoáveis e bons afogados por centenas de títulos que não duram uma semana de exposição, e que são, por regra, pouco mais que modas. Por outro lado, a proximidade com a edição portuguesa, o conhecimento do que vai sair, retira muito o factor surpresa e por isso, os livros de que vou falar são em inglês e na sua maioria comprados em livrarias estrangeiras.

continuar a ler aqui aqui.



sexta-feira, 21 de março de 2014

24 Anos da SolMar

 
 
Hoje, no dia Mundial da Poesia, a Livraria SolMar, comemora 24 Anos, dos quais nos orgulhamos muito, pela terra que amamos, continuando teimosamente a semear artes e letras.
O nosso muito obrigado aos nossos amigos e leitores.


terça-feira, 18 de março de 2014

José Medeiros Ferreia 1942-2014


                                                   Fotografia de Fernando Resendes


Perdemos hoje, um Grande Homem e um Grande Amigo. O nosso muito obrigado por tudo o que nos deu.
As nossas condolências à sua família e amigos.
José Medeiros Ferreira 1942-2014.


segunda-feira, 10 de março de 2014

Álamo Oliveira sobre borderCrossings: leituras transatlânticas 2





VAMBERTO FREITAS
– o leitor atento da nossa escrita
Álamo Oliveira

BorderCrossings/ leituras transatlânticas – 2  reune 80 textos recenseativos e ensaísticos, que dão continuidade aos incluídos em BorderCrossings – 1. Os textos estão agrupados por quatro espaços geográficos, cada um com título próprio, assim designados: «Literatura e açorianidade», «Diáspora e literatura», «Imaginários americanos» e «Brasil próximo e distante». Nestes subtítulos, cabe um conjunto significativo de leituras que, de uma maneira ou de outra, motivaram Vamberto Freitas para comentários críticos e opinativos que, por sua vez, exercem a função de originarem um outro e alargado número de leitores.

A aproximação analítica aos livros dos outros faz com que Vamberto Freitas seja, de forma indiscutível, o nosso crítico mais atento, mais ecléctico, melhor informado e também o que melhor domina as ferramentas que permitem a dissecação do texto, para proporcionar melhor leitura e melhor entendimento, sem que o seu ponto de vista fique maculado por qualquer tipo de pragmatismo. Aliás, acrescente-se que ele é um crítico generoso, exercendo o seu direito de opinião sob uma perspectiva pedagógica otimizada. Não fosse a sua generosidade e o seu gosto pela leitura e muito pouco se saberia, a nível regional e nacional, sobre a actividade editorial açoriana.

Como se sabe, Vamberto Freitas é a voz autorizada dos livros de autores portugueses, com predominância para os dos Açores e também dos livros de autores que escrevem na língua dos seus países de adoção e que têm procurado conquistar visibilidade nas designadas literaturas étnicas dos espaços da emigração portuguesa.

São já muitos os livros que Vamberto Freitas tem publicados, nos quais vem a reunir um trabalho persistente no âmbito da recensão crítica. Sabem disto quantos têm acompanhado o que faz publicar em jornais, revistas e, sobretudo, em suplementos literários, muitos dos quais coordenados por ele. Todos têm a noção de que se está perante um contributo inestimável para a revelação e apreço do que tem sido a nossa escrita criativa.

E veja-se o conteúdo de Border Crossings – 2:

«Literatura e açorianidade» é o capítulo que acolhe as recensões sobre os livros de autor açoriano. São diversos os nomes, alguns já desaparecidos do nosso convívio (Natália Correia, Fernando Aires), e outros tão novos ainda como Joel Neto e João Pedro Porto. O capítulo dedicado à «Literatura da diáspora» está aberto a diversas aproximações críticas sobre livros de autores lusodescendentes, mas também europeus e até islâmicos. Em «Imaginários americanos» cabem muitas abordagens a autores e livros que ajudam a reflectir sobre aqueles «imaginários» específicos. O quarto capítulo apresenta alguns escritores brasileiros que Vamberto Freitas vem a ler (Assis Brasil e George Monteiro, entre muitos) e que partilha com os outros.

Ao folhear este livro, cada leitor se apercebe facilmente que um dos aspectos importantes é o da sua estruturação, arrimada a uma arrumação lógica e cuidada, tornando-o de fácil consulta e fazendo com que os textos, para além da sua virtualidade pedagógica, possam reanimar o gosto pela leitura.

Já alguém disse que, se não fosse a persistência crítica e de registo de Vamberto Freitas, seria muito difícil falar-se da literatura açoriana com sabor a História, cronologicamente exposta e devidamente rodeada pela escrita nacional e internacional. Na verdade, ele contextualiza, sem ser sua intenção obedecer a tal propósito, a produção literária açoriana, relevando-a pelo que ela vale e pelo contributo indelével que vem a dar ao corpus da literatura de Língua portuguesa.

Posto isto, pretendo deixar expresso que o que devemos a Vamberto Freitas não se paga com agradecimentos de circunstância. Claro que temos outros nomes que têm prestado também um grande contributo na divulgação da escrita açoriana, como José Martins Garcia, António Machado Pires, Urbano Bettencourt e outros. Neste momento, cabe-me fazer emergir a generosidade de Vamberto Freitas, a qual não é passível de qualquer suborno sentimental, mesmo quando bem intencionado. Fico com BorderCrossings/ leituras transatlânticas – 2 para ler grata e atentamente.

 



quarta-feira, 5 de março de 2014

boderCrossings: leituras tansatlânticas II de Vamberto Freitas





 
Prefácio a boderCrossings: leituras transatlânticas II

 

Este segundo volume de borderCrossings: leituras transatlânticas foi (me) imaginado desde o início quando iniciei a coluna do Açoriano Oriental (Ponta Delgada) em 2010, e quando me foi então proposto assinalar todas as semanas o que, do muito que dentro e fora dos Açores, se ia publicando e que mereceria a atenção dos leitores. Este “muito” refere-se à literatura açoriana de várias gerações, assim como à literatura da nossa imigração, incluindo a que desde há alguns anos a esta parte começou a brotar de vários sectores académicos e intelectuais entre os luso-descendentes, particularmente nos EUA. Não escrevo para satisfazer a curiosidade, por parte de alguns, do que acaba de sair no mercado livreiro português, nem sequer ante os nomes mais novos e sonantes da literatura portuguesa contemporânea. Interessa-me aqui, em primeiro lugar, a escrita contemporânea que tem como referencial a experiência e/imigrante lusa lado a lado com a memória ancestral dos seus descendentes, ou então as ideias que, entre nós, enformam as sociedades em que nos encontramos e com as quais nos identificamos, desde qualquer recanto no mundo lusófono ao continente norte-americano. Nem por um segundo insinuo que o que se encontra comentado e contextualizado entre estas páginas se aproxima de qualquer “cânone” completo da literatura das nossas peregrinações. São escolhas minhas, ou então que se impõem pelos próprios autores que já conquistaram para si um espaço literário nesta ou nas suas sociedades natais, como no caso dos escritores, poetas e ensaístas de primeira ou mais gerações nos Estados Unidos. Para mim, tem sido gratificante ver nascer uma nova geração de escritores que fazem questão de se identificarem ante o seu público anglo-americano como “Portuguese-American writers/escritores luso-americanos”. Em nada se “reduzem” com essa designação, simplesmente reclamam para si todo um passado vivido e/ou transmitido pelas gerações anteriores, as que lhes deram vida, lhes moldaram o destino.

 Aí está, creio, o meu e o trabalho dos meus colegas em toda a parte – sim, a literatura luso-americana existe, e promete um dia, a melhor dela, fazer parte de duas grandes Tradições: a portuguesa e a americana. Não é pouco. É a integração intelectual e artística nas nossas pátrias sem fronteiras, nem sequer já têm língua oficial – somos daqui como somos de toda a parte, para agora redizer, ao contrário, o grande poeta da modernidade lusa transfronteiriça.

Vamberto Freitas

Ponta Delgada

Fevereiro de 2014