sábado, 8 de junho de 2019

Flor e Fúria por Ângela Almeida




Flor e Fúria, de Eleonora Marino Duarte

                                                                       Amor e morte, amor mortal: se isso não é toda a poesia, é, ao menos, tudo o que há de popular, tudo o que há de universalmente emotivo em nossas literaturas; em nossas mais antigas lendas e em nossas mais belas canções. O amor feliz não tem história. Só existem romances do amor mortal, ou seja, do amor ameaçado e condenado pela própria vida. O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a paz fecunda do par amoroso. É menos o amor realizado que a paixão de amor. E paixão significa sofrimento. Eis o fato fundamental.

ROUGEMONT, Denis (1988), O Amor e o Ocidente.


      Com um Prefácio de Fernando Pinto do Amaral, Flor e Fúria, de Eleonora Marino Duarte, apresenta-nos um alteridade para a narrativa do amor, necessariamente dual, tal como a matriz da condição humana: «Amor/uma dose de flor/uma dose de fúria/como a Criação». Como sabemos, o amor é um tema transversal e recorrente na Literatura, ancestral na Literatura Portuguesa, uma vez que logo o encontramos na Poesia Trovadoresca.
     A poesia é o lugar da representação ou da transfiguração da palavra, através da sua carga simbólica. Neste livro, o amor está representado na flor, descrição metaforizada pela delicadeza, pela fragilidade, pela inocência, pela suavidade e pela efemeridade comum a ambos- o amor e a flor. As flores nascem, desamparadas, nos campos, nos canteiros, nas bermas dos caminhos, e vivem indefesas perante a mão criminosa do ser humano, cuja bestialidade leva a que as arranque do seu habitat, tornando-as naquilo que deseja ver. Esse ser humano retiras-lhe o ar livre, o sumo da terra, o direito a alimentarem-se da chuva, do sol, do ar, para as subjugar a um mundo por si idealizado e criado. E a flor, sem voz, sem força anímica, deixa-se morrer. Tão enfermo é às vezes o ser humano que até pinta as flores, depois de secas, para ornamentos a seu gosto. E com o amor, não será tanta e tantas vezes assim? Por isso é que o sujeito poético de Flor e Fúria compara a inocência e a ingenuidade da flor aos «prados solitários da infância» e, é por isso, também, que afirma: «Floresce em tempos cruéis/rodeada de ira e ódio, crua/ num deserto de metáforas.»  Neste poema, o último da série «Flor», é definitivamente retirada a cortina para revelar que essa «única flor possível», «volátil», «indomável», «bela» é o «Amor», com A maiúsculo.
     Ora, também remonta à nossa Poesia Trovadoresca esse Amor divinizante, o Amor Total, anterior ou arquetípico- lugar onde matéria e espírito se fundem para ascender ao lugar do Belo, do Amor essência, que vive em «moinhos de pureza»: «Desde alguma Era e antes dela, como névoa, / poeira de uma estrela que assim fosse nascer/ e antes de se inventar, ainda antes. / / É tão antigo e anterior o amor que por ele sinto/…/ Amo-o como se fosse eu a inventar o Amor.». É, pois, a apologia desse Amor, lugar de ascese, que aqui se faz: «exalta ofegante o espírito, ao amar».  Necessariamente, é a este Amor que se aspira: terno, belo, envolvente, delicado, lugar do dia, por oposição à turbulência, à severidade, à violência, ao frio, lugar da noite, chão da morte, que constitui o universo poético da segunda parte do livro, denominada «fúria», alteridade de eros ou de um pássaro «com as asas abertas em fúria.» (último verso do último poema). Depois de um tempo de brisas suaves, de movimento, de exteriorização – primeira parte do livro, intitulada «Flor» -, eis que surge este outro tempo, agonizante, de estagnação e de interiorização, com a vida encarcerada («encarcerados os dias»), com o amor morto («secam as rosas»), com a noite a colonizar o dia e a fazer emergir o amor com a minúsculo-lugar de eros: «Meus pés e mãos, atados atos» - segunda parte do livro, intitulada «Fúria». A fúria é a antítese da flor, do Amor, porque é lugar de «Invasão», de «cerco da crueldade», de «ódio”, de «difamação», de um «corcel» ou de um «cavalo selvagem», de um «obituário».
  Ora, retomando a epígrafe de Denis de Roulement, do que se fala neste livro é de um profundo sofrimento do sujeito criador, de uma dor funda «aguda» e «antiga», pela ausência de um Amor Total e pela vivência de eros, que cria apartamento: «Esperam notícias tuas/as sombras das árvores postas no chão/ / Sacrificam-se por ti/ as rosas aprisionadas em apartamentos».  A propósito, as rosas são as únicas flores nomeadas neste livro, não por acaso, uma vez que a rosa é o símbolo do amor puro.
           Num belíssimo ensaio de I K Centeno - «A alquimia do amor» -, encontramos a mesma apologia do Amor, que é feita pelo sujeito poético de «Flor e Fúria»: «A mulher que se vê-companheira, amante, ou deusa iniciadora – é a projeção de um oposto a integrar nessa união superior a que se aspira» (p. 23). É por isso que nestes poemas lemos «a alma benzida numa luz amanhecida e única.» E ter essa luz é vivenciar esse Amor que agrega e, por isso, é a via ascendente.
      Este livro revela ainda uma consciência poética própria de quem sabe o que é a poesia: há muito que a autora lê e diz os poemas de muitos e muitos autores da nossa lusofonia. Esse contacto tão íntimo com a poesia viabilizou-lhe uma voz pessoal, ciente que escrever um poema não é   rescrever: escrever poesia é criar um alfabeto próprio, que serve o Belo na alteridade onde é possível fazer coexistir opostos, pois apenas a poesia-pela sua essência- possui a capacidade de juntar e fundir, e, ao fazê-lo, cria uma nova dimensão, lugar de harmonia. Só assim é possível tornar o texto na alteridade vivencial- rêverie- onde é possível viver a utopia que se desejou para a vida. Esta é a função mágica da poesia.

  Ângela de Almeida