terça-feira, 30 de março de 2010

Feliz Eleito

José Ferraz de Almeida, Moça com livro
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“Mas, passado um bocado, comecei a fazer cálculos de cabeça, com um resultado bastante inesperado. Antes de entrar, vê bem, disse para comigo que se lesse um livro por dia, o que seria com certeza bastante absorvente, acabaria, nalgum momento, por chegar ao fim, e poderia então aspirar a uma certa posição na vida intelectual, mesmo que de vez em quando saltasse um ou outro. Mas o que pensas que o bibliotecário me respondeu quando vi que o que nosso passeio nunca mais acabava e lhe perguntei quantos volumes continha exactamente esta absurda biblioteca? Três milhões e meio, respondeu-me! Quando ele me disse isso estávamos perto dos setecentésimo milhar: a partir desse momento não cessei de fazer cálculos com lápis e papel: e segundo as minhas previsões precisaria de dez mil anos para concluir o meu projecto.”

O Homem Sem Qualidades, Robert Musil, Ed D. Quixote.

A constatação do número infinito de leituras possíveis, como não pensar, face à incalculável quantidade de livros publicados, que qualquer empreitada de leitura, mesmo multiplicada por toda uma vida, é uma angustia, considerando todos os livros que permanecerão para sempre ignorados.
A leitura é, mesmo para os grandes leitores que a ela consagram a sua existência, o gesto de abrir um livro que esconde sempre o gesto inverso, que se efectua simultaneamente e que por isso mesmo passa despercebido: o gesto involuntário de não abrir aquele preterido, em vez do feliz eleito.

2 comentários:

Maria Brandão disse...

vivo numa angústia

Carolina disse...

No livro "O Décimo Terceiro Conto" de Diane Setterfield a personagem principal debate-se também com esse problema.

A dada altura diz:

"...há demasiados livros no mundo para poderem ser lidos, portanto tem de se traçar uma linha algures"