«A presença dos soldados do Continente nas ilhas dos Açores, tornou-se, durante longo tempo, um tema inspirador da criatividade popular. Quando mais tarde, à força de ouvir discussões e piadas politicas, cheguei a entender que a «situação» (descrita nas últimas páginas do livrinho de História como a restauração da ordem e da prosperidade) não agradava a todos, nem por isso me veio à cabeça a possibilidade de alguém pôr em causa as virtudes do nosso povo. Essas virtudes conservavam-se, independentemente do regime. O povo do tempo dos reis, o povo de tempo da tempestuosa república, o povo de Fátima e Salazar – o povo conservava, no âmago, a honradez e o poder criador.
Eu naturalmente por ignorância, ainda não tinha reparado na criatividade popular. Tratava-se, afinal, das festas sacras ou profanas, ou da mistura de ambas, ou de fábulas recitadas de geração em geração, com maior ou menor fidelidade a um modelo esfumado no antigamente. (Mais tarde, todas essas manifestações – cópia, decalques, adaptações, distorções – viriam a merecer o nome de cultura, cultura popular enquanto houve elites, cultura tout court quando em teoria se acabaram as elites...) Éramos portanto pessoas cultas e criadoras, desde o José do Copo, lidimo representante do In Vino veritas, até aos bailadores da chamarrita; desde a loja do alfaiate até aos rimadores de cantigas ao desafio. O povo criava. Além de lêndeas e piolhos, as cabeças criavam cultura.»
Contrabando Original, José Martins Garcia, Editora Vega.
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