«Os membros do gabinete do senhor Presidente estavam em pânico. Há dois dias que procuravam contactar, por telefone, a pequena ilha para anunciarem a data do programa da visita constitucional. Mas o telefone apenas devolvia ruídos intermitentes que não forneciam qualquer interpretação técnica. Era como se estivessem a ligar para o ponto zero do quintal mais próximo. E, no entanto, era urgente cumprir a lei que prescrevia: «Ao menos uma vez por mandato, o governo visitará cada uma das suas ilhas» Faltava a mais pequena e mais distante. É que, passado quase um século, o mandato terminava na semana seguinte e, em vésperas de eleições, nenhuma ilegalidade podia transformar-se em trunfo nas mãos da oposição. Só que o telefone não atinava com aquela ilha pequena e distante. O eco nem tinha forças para lhes devolver o apelo.
Houve que reunir de emergência. As calvícies aumentaram, branquearam cabelos, fizeram-se esforços suplementares e aconteceu o habitual: suores frios e derramamentos cerebrais. Mas não conseguiram qualquer contacto com a ilha, mesmo com funcionários destacados para discar o número durante vinte quatro horas.
Sobre a mesa de reuniões, puseram todas as hipóteses: avaria do único telefone da ilha (a Companhia não o podia comprovar e, muito menos, reparar); que os habitantes andavam a festejar o Espírito Santo (era época disso); que estavam a ensaiar folclore (em tempos, tinham-lhes prometido um passeio); que os membros da filarmónica estavam a aprender a tocar o hino para a eventual visita do senhor Presidente; que se mantinham ocupados em qualquer acontecimento social. Mas em circunstância alguma, ficariam impedidos de passar, mesmo que fugazmente, pelo telefone.
Puseram, então, hipóteses mias convencionais: descontentamento com a governação (nem sequer conheciam o senhor Presidente); mudança de pátria (a América ali tão perto e muito mais rica); alguém com a conivência do padre, dera o grito de independência e pronto. (…)
Partiram como calhou. Pouca bagagem. Nada de coisas supérfluas. O Chefe de gabinete meteu, na pasta, o mais importante: o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que já lera nas outras ilhas. Enfiaram também três jornalistas e um operador de câmara de televisão para o registo óbvio. Era o q.b..
O senhor Presidente enjoava a bordo e, por simpatia, os membros do gabinete enjoavam também. Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa. Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que, com a continuidade, desfaleciam até se transformarem em gemidos agónicos. Mas só numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifício de governar ilhas.» (…)
O barco foi-se aproximando. Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante ou mosca sobre taça de gelatina. E quando o cais ficou à mão de atracar, já todos tinham caído no oceano do desânimo. É que nem as autoridades autárquicas, nem a filarmónica, nem grupo de folclore, nem o padre, nem qualquer pessoa, se postara sobre o cais para esperar tão ilustre comitiva. Os jornalistas sentiram-se, enfim, analfabetos e o operador de câmara o escravo de todas as máquinas inúteis. Pela primeira vez, era possível provar que se pode reduzir qualquer governo à sua insignificância.» (…)
Com Perfume e Com Veneno de Álamo de Oliveira, Ed. Salamandra 1997
Houve que reunir de emergência. As calvícies aumentaram, branquearam cabelos, fizeram-se esforços suplementares e aconteceu o habitual: suores frios e derramamentos cerebrais. Mas não conseguiram qualquer contacto com a ilha, mesmo com funcionários destacados para discar o número durante vinte quatro horas.
Sobre a mesa de reuniões, puseram todas as hipóteses: avaria do único telefone da ilha (a Companhia não o podia comprovar e, muito menos, reparar); que os habitantes andavam a festejar o Espírito Santo (era época disso); que estavam a ensaiar folclore (em tempos, tinham-lhes prometido um passeio); que os membros da filarmónica estavam a aprender a tocar o hino para a eventual visita do senhor Presidente; que se mantinham ocupados em qualquer acontecimento social. Mas em circunstância alguma, ficariam impedidos de passar, mesmo que fugazmente, pelo telefone.
Puseram, então, hipóteses mias convencionais: descontentamento com a governação (nem sequer conheciam o senhor Presidente); mudança de pátria (a América ali tão perto e muito mais rica); alguém com a conivência do padre, dera o grito de independência e pronto. (…)
Partiram como calhou. Pouca bagagem. Nada de coisas supérfluas. O Chefe de gabinete meteu, na pasta, o mais importante: o discurso que o senhor Presidente iria proferir- o mesmo que já lera nas outras ilhas. Enfiaram também três jornalistas e um operador de câmara de televisão para o registo óbvio. Era o q.b..
O senhor Presidente enjoava a bordo e, por simpatia, os membros do gabinete enjoavam também. Era bonito ver toda aquela solidariedade governativa. Conseguiam mesmo imitar os roncos presidenciais que, com a continuidade, desfaleciam até se transformarem em gemidos agónicos. Mas só numa viagem como aquela se conseguia avaliar o sacrifício de governar ilhas.» (…)
O barco foi-se aproximando. Reduziu a velocidade e deslizou como tapete rolante ou mosca sobre taça de gelatina. E quando o cais ficou à mão de atracar, já todos tinham caído no oceano do desânimo. É que nem as autoridades autárquicas, nem a filarmónica, nem grupo de folclore, nem o padre, nem qualquer pessoa, se postara sobre o cais para esperar tão ilustre comitiva. Os jornalistas sentiram-se, enfim, analfabetos e o operador de câmara o escravo de todas as máquinas inúteis. Pela primeira vez, era possível provar que se pode reduzir qualquer governo à sua insignificância.» (…)
Com Perfume e Com Veneno de Álamo de Oliveira, Ed. Salamandra 1997
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