« O facto de se achar naquele recinto, onde também os Pré-Rafaelitas estavam representados com pinturas, devolvia aos seus modos a altivez que mantivera dominada em Sheffield. Ela sabia usar todo o poder que tinha o seu cabelo e, ao levar as mãos à nuca, para o desprender, sabia o que fazia. Apenas uma espécie de mulheres, para além das rameiras, exibia a cabeleira solta. Eram mulheres que existiam a duas dimensões e cuja improbabilidade sexual lhes permitia quase uma nudez. Mesmo as figuras das fotografias buscavam um estatuto de inocência igual à das pintadas sobre tela. Na Exposição, no meio de muitas outras que, com a sua novidade técnica, desorientavam o olhar do público, a visita de um jovem a um bordel onde o esperavam cortesãs despidas provocou atitudes de censura. Mas a rainha decidiu que não passava de uma obra de arte e retirou-lhe o peso do real. Ela, a quem se devia a inspiração para a moralidade de uma época, comprou-a por dez libras para o marido.
Lizzie, com o seu cabelo desarranjado como por acidente de viagem, e onde a pequena touca não passava de uma folha caída, cruzava uma influência com os quadros. Saía deles, ardendo, sem que a chama fosse mais do que luz e pigmento. O próprio nome dessa cor, Ticiano, provindo do pictórico, fugia ao catálogo comum. O termo «ruiva», que subentendia a crença em marcadores genéticos de aviso sobre pessoas pouco aconselháveis, foi-lhe aplicado com frequência. No entanto, o que quer que existisse de vermelho perdia-se na massa acobreada. A chuva que caía sobre os vidros daquele tecto em abóbada não podia apagar todo o brilho que emanava.»
sua voz intensidade erótica que prevenisse Lizzie contra o homem que estava a querer entrar na sua vida.»
Adoecer, de Hélia Correia, Relógio d'Água, 2010.
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«O “mito Lizzie” declina-se em algumas palavras: beleza romântica e doentia, inclinações mórbidas, atracção pelo decadente, destino trágico e transgressão dos códigos a que as mulheres estavam sujeitas (e, neste sentido, há nela um princípio de afirmação feminista longamente explorado no romance de Hélia Correia). Ela é uma presença misteriosa e espectral, vinda de uma zona de trevas que não é contemporânea do seu tempo. Daí a atracção que exerce sobre aquele grupo de tard venus (mas, ao mesmo tempo, vanguardistas), fascinados pelas fantasmagorias da história. No romance de Hélia Correia, a doença é mais do que um leitmotiv, é um acontecimento (daí, o infinitivo do título: “Adoecer”) que emerge como uma verdadeira personagem, o sujeito de uma narrativa. Na beleza e na doença (as duas coisas estão intimamente ligadas), Lizzie representa um ideal feminino (…). Ela é, em sim, uma personagem romanesca, eminentemente literária. E é esta dimensão que surge aqui explorada exaustivamente.»
(António Guerreio, Actual, 24 ABR)
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