terça-feira, 2 de abril de 2019

A Brecha de João Pedro Porto, por Leonardo Sousa

Atrelai o pensamento à popa destes navios1 – uma abordagem ao universo d’A Brecha2

São territórios impiedosos, quase intransponíveis, geografias que se confundem e entrelaçam, que convocam um leitor disposto a cortar as árvores necessárias para abrir passagem. Em João Pedro Porto, no seu labor literário, é quase indistinta a referência da invenção, o dado narrativo da ideia que o move. «Todo o fio da ideia era cuidadosamente entrelaçado em tramas», avisa-nos o narrador à vigésima-primeira página, antecipando que o «traço na página branca» (p. 31) é “erigido no binómio, como o próprio Homem” (p.31).
Com o título – A Brecha –, abre-se desde logo um amplo núcleo semântico que serve ao leitor de cais ou de ponto de partida. Na capa, a “brecha” é representada na sua forma de matéria rochosa, recordando-nos que o inconsciente humano é muitas vezes tomado por um composto de estratos e fragmentos comparáveis a uma rocha ou a uma falésia. Por outro lado, “brecha” significa “fenda” ou “abertura”, ocupando também, por conseguinte, os sentidos de “escape” ou de “fuga”. O autor explora e desenvolve, ao longo do livro, com assinalável destreza e inteligência, todos estes sentidos de “brecha”.
Estruturalmente, A Brecha é composta por quarto partes, que alternam entre os géneros narrativo, lírico e dramático – se bem que o segundo, tendo em vista a ebulição simbólica da escrita que aqui se tem presente, seja o mais constante. A constante transformação do significado sugere, no sentido mais literal, um delongado e imaginativo apuramento poético da palavra, até que se traga à existência algo que não existia. (Curioso que o sentido mais radical de poiesis seja este de fazer novo, de trazer à vida aquilo que a acção humana ainda não conseguiu concretizar).
«Que inferno era aquele? Era assim que se morria?» (p. 17). Em Hominis, primeiro Tomo, desorientado, um homem abre uma primeira brecha numa falésia de Sagres, expelindo-se da terra, como de um útero, braço a braço, numa noite ou num tempo em que “tudo se encostava, sem distinção, à perdição sideral” (p. 15). Dele, sabemos que “ainda não era ninguém” (p.17) e que enverga um manto que “era todo ele uma mãe” (p. 18). Este é um homem à semelhança de um recém-nascido – ou um homem que nasceu de novo, sem que o leitor saiba ainda por quê. Ele ali pernoita, tentando abrigar-se do frio, e depois de ouvir os burburinhos de um acto adúltero entre deuses – que ali perto também pernoitam, diz-nos o narrador –, sai do promontório e dirige-se a um tasco cujo proprietário é Alcides Vilaça, poeta e parricida. Hipocrene seria, na Grécia, a fonte das musas consagrada a Apolo – nas páginas de João Pedro Porto, toma o nome do tasco onde se conjura a morte dos deuses, retomada no Tomo II. Mas, para lá das referências à mitologia clássica, aqui entrecruzam-se dois dos mais fundamentais mitos da psicanálise: a sombra da mãe – também reconhecível em Hamlet ou na obra de Hitchcock – e o assassinato do pai, que remete, por extensão, para a morte dos deuses, tanto nos recordando Zaratustra como as vanguardas existencialistas do século XX.
Numa realidade paralela, o narrador dá-nos conta de um outro Homem inominado, desiludido e entregue a uma “época indistinta de qualquer outra” (p.28) – um tempo de banalidade e tédio a que não coubera nenhuma descoberta ou invenção, um tempo “desabituado ao desconhecido” (p.32) -, que decide abafar o seu fastio com a composição de “ficções abarrotadas de neologia” (p.29), apontamento meta-literário que estabelece uma relação de semelhança com o discurso narrativo, cheio de luxos linguísticos, arcaísmos, referências mitológicas e históricas e demais artifícios de retórica. Apercebe-se este inominado, a certa altura, de que o traço que inscrevera na página se reproduzira, na forma de brecha, fenda, abertura, na parede do quarto. Aqui, novamente o discurso insinua que a curiosidade, a descoberta e a fuga à banalidade não são alheias ao desejo libidinoso: «a falha (…) toma a forma de promessa, pois a vulva que começara estreita avulta quando-a-quando» e o Homem «despeitado por anos de desejos e pulsões, considera violar a gretadura» (p.33). Quando escapa pela brecha, apercebendo-se de que ela o conduzirá a outro sítio, o leitor intui que os dois Homens são, na verdade, o mesmo, retratados por perspectivas diferentes do mesmo narrador, que inverte a ordem dos acontecimentos: o Homem inominado, cuja viagem será a “desbravar vazio dentro” (p.35), torna-se, na passagem pela brecha, o Homem encoberto que, de alguma forma, ressuscita no promontório, dirige-se ao Hipocrene, encontra três cépticos que convida para uma viagem ao Apocalipse – maneira grega de dizer “revelação”, mas, nesta obra, também sinónimo de “finalidade”, “destino”, “propósito” -, retoma uma nave antiga e embarca. O naufrágio dessa mesma nave – Arcádia – serve de motivo ao narrador para fechar o primeiro Tomo e abrir um segundo, onde o leitor encontra a forma teatral a dar expressão à culpa e ao castigo dos deuses. O delito, cometido entre a deusa do amor e o deus do tempo, atraiçoa Clio, deusa da história, que, assassinando Cronos, morre também. Que faz o amor sem memória? Cípria, em desespero, “entrega-se ao vazio de fora, perdida no vazio de dentro” (p.149), isto é, precipita-se falésia abaixo.

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