quinta-feira, 16 de julho de 2015

Inês Dias - " O Deserto do Papel ", de Inês Pereira Botelho : Way to Blue



WAY TO BLUE
- Apresentação de O Deserto do Papel, de Inês Pereira Botelho
 (Ponta Delgada, Junho de 2015)


Há pessoas que são como lugares, E, neste caso, famílias que são como lugares: regressar para junto delas traz-nos de volta a um lugar em que há sempre alguém contente por se cruzar connosco num aeroporto (como a Inês e a sua família); um lugar em que não se esquecem as músicas – leia-se, as pessoas – da nossa vida, por mais voltas que esta dê (e estou a falar da Renata Correia Botelho); em que a poesia ensina a unir as pontas do mar (e falo do Emanuel Jorge Botelho), em que o milagre da vida acontece diariamente, como no poema em forma de lapinha que a Lorena Correia Botelho criou para mim.
É precisamente esse o lugar a que os livros da Inês (nascida em 2004) nos trazem, tanto o primeiro – A Cinza Roxa (2011) – como este novo O Deserto do Papel. Os textos são concisos, gerados à volta de imagens que partem do mais ínfimo, de pormenores que, através do seu olhar quase fotográfico, se transformam em metáforas de algo muito maior. Já em A Cinza Roxa a Inês começava por escrever “ O meu mundo é o meu segredo e o meu tesouro” e de facto, os textos agora reunidos possuem uma profunda dimensão humana, atenta aos outros, seja no poema sobre “Aquelas crianças solitárias/com a sombra vazia “ (p.19), seja no terno poema intitulado “ Os hábitos do rapaz solitário” (p.13), ou ainda no texto sobre “ A Guerra” (p.33).

Mas não se pense que esta dimensão ética dos textos da Inês se reduza ao Homem. Pelo contrário, sabem integrar o Homem na Natureza, permitindo-nos assistir à passagem das estações ao longo das páginas ou às flores que nascem e “ganham asas” do poema “ Na Páscoa” (p.9), e fazendo-nos sobretudo acreditar que há mesmo um deus entre as ervas, que não nos deixa esquecer os mais pequenos e desprotegidos. A título de exemplo, não resisto a citar na íntegra o poema “Um gato invulgar”, dedicado a Daniela Gomes:

   “Sempre que passava pelo
    parque natural da rua
             da arte, encontrava um gato
             preto com pintas vermelhas
             a que chamava o gato do relvado.
             Nos dias em que o sono
             o enrolava na noite, as nuvens
             serviam-lhe de companhia e o céu
             de abrigo. Era o que tinha aquele
             gato com frio. Quem por lá passava
             não via o animal!
             Até sozinho passava"

Curiosamente, alguns dos textos do livro foram produzidos em contexto de aula. E tendo contado a minha vida durante muito tempo em anos escolares e não em anos civis, não posso deixar de me sentir verdadeiramente feliz com o facto de a escola funcionar, desta vez - e como deveria funcionar de todas as vezes -, enquanto sítio encorajador de produção e não de repetição, de consciência em vez de indiferença.
Uma outra dimensão muito presente neste livro é a da luz. Há uma constante procura dessa luz que torne a noite menos escura – ou, nas palavras da própria Inês, de “uma vela acesa sobre a escuridão” (p.34). Trata-se de uma luz capaz de redimir o mundo e de revelar uma alegria profundamente íntima mas partilhável em tudo, desde “ O mundo dos sonhos “ (p.11) ao poema “Inverno”, que inicia o livro e que cito:

   “ Por vez o inverno é bom
              o vento assobia baixinho
              e entre a névoa nasce um sol frio.”


No fundo, a maravilhosa capa que a Daniela Gomes fez sintetiza estas duas dimensões: aquele gato é um segredo adormecido sobre si próprio, aguardando, aconchegado e sereno, “ o dia seguinte” (p.13). Que os dias e as palavras da Inês sejam sempre assim, e nos continuem a iluminar.


Inês Dias
Livraria Solmar / Ponta Delgada, 25 de junho de 2015


            Inês Pereira Botelho nasceu a 16 de Março de 2004, em Ponta Delgada, ilha de São Miguel, Açores.
           Os poemas agora publicados foram escritos entre 2012 e 2015. Contando sempre com o total envolvimento da autora, sofreram alterações muito pontuais, que basearam-se sobretudo em pequenos ajustes na parte gramatical.
      Alguns dos textos em prosa, igualmente intervencionados de forma mínima, foram produzidos ao longo do 4º ano de escolaridade (2013/2014), em contexto de aula. Os dois textos finais datam já de 2015.




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