WAY
TO BLUE
- Apresentação de O Deserto do Papel, de Inês Pereira
Botelho
(Ponta Delgada, Junho de 2015)
(Ponta Delgada, Junho de 2015)
Há
pessoas que são como lugares, E, neste caso, famílias que são como lugares:
regressar para junto delas traz-nos de volta a um lugar em que há sempre alguém
contente por se cruzar connosco num aeroporto (como a Inês e a sua família); um
lugar em que não se esquecem as músicas – leia-se, as pessoas – da nossa vida,
por mais voltas que esta dê (e estou a falar da Renata Correia Botelho); em que
a poesia ensina a unir as pontas do mar
(e falo do Emanuel Jorge Botelho), em que o milagre da vida acontece
diariamente, como no poema em forma de lapinha que a Lorena Correia Botelho
criou para mim.
É
precisamente esse o lugar a que os livros da Inês (nascida em 2004) nos trazem,
tanto o primeiro – A Cinza Roxa
(2011) – como este novo O Deserto do
Papel. Os textos são concisos, gerados à volta de imagens que partem do
mais ínfimo, de pormenores que, através do seu olhar quase fotográfico, se
transformam em metáforas de algo muito maior. Já em A Cinza Roxa a Inês começava por escrever “ O meu mundo é o meu segredo e o meu
tesouro” e de facto, os textos agora reunidos possuem uma profunda
dimensão humana, atenta aos outros, seja no poema sobre “Aquelas crianças solitárias/com a sombra
vazia “ (p.19), seja no terno poema intitulado “ Os hábitos do
rapaz solitário” (p.13), ou ainda no texto sobre “ A Guerra” (p.33).
Mas
não se pense que esta dimensão ética dos textos da Inês se reduza ao Homem.
Pelo contrário, sabem integrar o Homem na Natureza, permitindo-nos assistir à
passagem das estações ao longo das páginas ou às flores que nascem e “ganham asas” do poema “ Na Páscoa”
(p.9), e fazendo-nos sobretudo acreditar que há mesmo um deus entre as ervas, que não nos deixa esquecer os mais
pequenos e desprotegidos. A título de exemplo, não resisto a citar na íntegra o
poema “Um gato invulgar”, dedicado a Daniela Gomes:
“Sempre que passava pelo
parque natural da rua
da arte, encontrava um gato
preto com pintas vermelhas
a que chamava o gato do relvado.
Nos dias em que o sono
o enrolava na noite, as nuvens
serviam-lhe de companhia e o céu
de abrigo. Era o que tinha aquele
gato com frio. Quem por lá passava
não via o animal!
Até sozinho passava"
da arte, encontrava um gato
preto com pintas vermelhas
a que chamava o gato do relvado.
Nos dias em que o sono
o enrolava na noite, as nuvens
serviam-lhe de companhia e o céu
de abrigo. Era o que tinha aquele
gato com frio. Quem por lá passava
não via o animal!
Até sozinho passava"
Curiosamente, alguns dos textos do livro foram produzidos em contexto de
aula. E tendo contado a minha vida durante muito tempo em anos escolares e não
em anos civis, não posso deixar de me sentir verdadeiramente feliz com o facto
de a escola funcionar, desta vez - e como deveria funcionar de todas as vezes
-, enquanto sítio encorajador de produção e não de repetição, de consciência em
vez de indiferença.
Uma outra dimensão muito presente neste livro é a da luz. Há uma
constante procura dessa luz que torne a
noite menos escura – ou, nas palavras da própria Inês, de “uma vela acesa sobre a escuridão”
(p.34). Trata-se de uma luz capaz de redimir o mundo e de revelar uma alegria
profundamente íntima mas partilhável em tudo, desde “ O mundo dos sonhos “
(p.11) ao poema “Inverno”, que inicia o livro e que cito:
“ Por vez o inverno é bom
o vento assobia baixinho
e entre a névoa nasce um sol frio.”
o vento assobia baixinho
e entre a névoa nasce um sol frio.”
No fundo, a maravilhosa capa que a Daniela Gomes fez sintetiza estas
duas dimensões: aquele gato é um segredo adormecido sobre si próprio,
aguardando, aconchegado e sereno, “ o dia
seguinte” (p.13). Que os dias e as palavras da Inês sejam sempre
assim, e nos continuem a iluminar.
Inês Dias
Livraria Solmar / Ponta Delgada, 25 de junho de 2015
Livraria Solmar / Ponta Delgada, 25 de junho de 2015
Inês
Pereira Botelho nasceu a 16 de Março de 2004, em Ponta Delgada, ilha de São
Miguel, Açores.
Os poemas agora publicados foram
escritos entre 2012 e 2015. Contando sempre com o total envolvimento da autora,
sofreram alterações muito pontuais, que basearam-se sobretudo em pequenos
ajustes na parte gramatical.
Alguns dos textos em prosa,
igualmente intervencionados de forma mínima, foram produzidos ao longo do 4º ano de escolaridade (2013/2014), em contexto de aula. Os dois textos finais
datam já de 2015.
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