Fotografia de Fernando Resendes
Meteorologia açoriana e o
continente como desterro
É a minha vez de
me expor, de contar histórias, de as cruzar comigo, o meu modo de ser, as
minhas contradições e alterações de humor. De escrever um livro que um neto um
dia encontrará e com o qual poderá tentar dialogar.
Nuno Costa Santos, Céu Nublado com Boas Abertas
Vamberto Freitas
De todos os livros que Nuno Costa Santos vem publicando
ao longo da sua carreira, os contos de dez regressos, publicado em 2003
pela extinta Salamandra Edições, então sob a direcção do seu fundador Bruno da
Ponte, permanece o seu livro mais
conhecido e, na altura, mais comentado por um apreciável rol de críticos.
Retiro-o da nossa estante aqui em casa em preparação para as linhas que se
seguem, e deparo-me com algumas das suas páginas sublinhadas a lápis e
comentado nas margens. Foi a leitura da
Adelaide Freitas, autora do Sorriso Por Dentro Da Noite, que seria
publicado um ano depois. Releio alguns passos, duplamente fascinado – pela
prosa contundente e ágil de um escritor então ainda tão jovem, e nada menos
surpreso pelas palavras da minha grande companheira de vida. De entre os montes
de livros nas nossas duas secretárias, ela não deixava nunca passar em branco nenhum
livro de um autor açoriano, quer esse autor se visse como tal, quer ele se
entendesse como tal, quer ele se entendesse como sendo pertencente a geografias muito mais vastas e a cânones
supostamente muito mais conhecidos e prestigiados, ou até como um candidato
“nacional” ao Nobel. “Viagem em livro de aprendizagem”, “memória”, “e a memória
sempre”, escreve ela progredindo na leitura; “note-se a subtileza a todos os
níveis”, aponta outro o passo em questão. “Não era igual aos outros”, escreve
numa das margens sobre um personagem ou protagonista, ou simplesmente reforça
as suas palavras narrativas. Por fim, e entre outros comentários seus, viro
para a última página, e encontro enfaticamente sublinhadas as derradeiras
palavras do livro: “Só sinto pena de estarmos a consumir a nossa intimidade numa cidade
que desconhece os nossos nomes e o silêncio da nossa baía”. A minha regra de
nunca ler mais ninguém sobre um livro que eu próprio tenciono comentar foi-se
desta vez, e ainda bem. Uma geração de escritores a ler a seguinte, com bondade
e inevitavelmente com mente teorizadora, pois foi a nossa a primeira geração
nos Açores com formação literária superior. Ouço, nesta tarde tranquila aqui no
Pópulo, as vozes serenas de um autor que regressa em força à nossa
convivência, e ouço com saudades a voz acutilante desta sua outra leitora,
talvez um dos últimas livros que teve entre mãos antes de ser silenciada pela
doença. Não vou tentar adivinhar o que a Adelaide diria agora deste novo
romance de Nuno Costa Santos, Céu Nublado com Boas Abertas, mas tenho a
certeza absoluta que não discordaria, pelo menos em parte, da minha apreciação.
A palavra regresso é uma das umas constantes da prosa de Nuno Costa
Santos, tal como já o eram em obras suas anteriores. A verdade é que o autor
pertence a uma geração que nasceu e cresceu com a “revolução” da sociedade
portuguesa a partir de 1974, e cedo começou a dar conta de si como novas vozes
literárias, alguns deles atingindo hoje o estatuto ambíguo da maturidade,
sabendo que o seu lugar nas nossas estantes ou se consolida agora, ou então
passam eles a ser meras curiosidades de uma época,
escritores de ocasião e por quinze minutos famosos. Creio que este romance é
algo mais do que isso, do que um inevitável regresso à terra de nascença e de
todos os afectos. É um retrato extremamente bem conseguido da vida açoriana nos
tempos da maior agonia da nossa modernidade, e da insistente memória de que
todos necessitamos contra a perdição no Nada, que as partidas também
significam. O regresso a casa, na vida e na arte, não é um capricho, é o mais
antigo mandamento desde a literatura dos gregos, é o princípio e o fim da
poesia, a memória de termos sido como testemunho de quem somos ou de como nos
entendemos entre todos os outros.
Céu Nublado com Boas Abertas coloca-nos no tempo presente quando, num apartamento
lisboeta, cheio de memórias e que fora dos seus avós maternos, o
protagonista-narrador descobre um romance inédito, Exílio na Montanha,
do seu avô açoriano, João Pereira da Costa, (nascido nos Fenais da Luz, em S.
Miguel), que foi como doente de tuberculose, contraída como militar nas Furnas,
para os sanatórios do Caramulo nas décadas 30-40, e alguns anos depois como
administrador bancário, transferido dos serviços da ilha para a capital.
Narrado na primeira pessoa, a estrutura do romance é de uma audácia formal
pouco habitual na literatura portuguesa, combinando biografia, autobiografia,
historicismo, e um inusitado dialogismo bakhtiniano (o carnavalesco, diria o
teórico russo, faz parte da tragédia de estarmos vivos) entre a obra presente e
a que inesperadamente a desperta
após a sua descoberta nas estantes agora só visitadas por um neto, esse que as
lê e leva a cabo um outro pedido escondido do avô – quem encontrasse o seu
romance fosse à ilha recolher outras histórias, como que numa actualização do
que ficara dito por um escritor da geração desaparecida. Eis aqui a síntese
possível de um romance que viaja entre os anos dessa geração, e a dos nossos
dias, a sociedade açoriana lembrada numa época já então de um isolamento
relativo e os dias presentes de um narrador-escritor regressado, uma vez mais,
às origens e enfrentando a ambiguidade da sua própria identidade e razão de
vida, apanhado logo de início numa teia policial que lhe vai permitir dissecar
outras misérias que assolam a vida moderna nas ilhas desce aos seus subterrâneos
enquanto todos em volta fingem normalidade. A ilha, agora, é tão-só a metonímia
das grandes sociedades em qualquer parte, só que o narrador não dispensa mais
os cantos onde nasceu e aprendeu a amar ou a espreitar o resto mundo. Não vou
repetir a temática do regresso (as frases soltas da Adelaide citadas
anteriormente claramente dizem algo sobre isto) que faz da nossa escrita um corpus
literário de grande autenticidade, quase sem igual no mundo da
lusofonia, e aqui está um dos nossos mais eloquentes e bem conseguidos, creio
que duradouros, exemplos em Céu Nublado com Boas Abertas,
a própria meteorologia
açoriana uma personagem dominante na nossa maneira de ver obcecadamente
adivinhar o mundo e os seus instáveis humores. A ideia de crime como
ponto de partida para as mais recentes grandes narrativas referenciadas no
arquipélago parece ser uma constante. Na obra presente leio as andanças de
pequenos fora-da-lei repatriados e nativos ligados ao mundo da droga e da
prostituição numa ilha atlântica como um contraponto
bem mais ameno ao crime oficializado que era o da sociedade em geral na
narrativa de Exílio na Montanha, a arbitrariedade entre a vida e a morte
de todos um absoluto do seu quotidiano. Para além do sofrimento em o Céu
Nublado com Boas Abertas, está o amor dessas mesmas gerações idas, tendo
como antonímia o vazio existencialista da actualidade, um mundo de tudo e uma
vida de nada. É delicioso passear-nos com o narrador deste romance por pequenas
zonas e bairros micaelenses, reviver com ele o sentido das coisas quando a doce
solidão e inocência pré-adulta são a memória a que mais nos agarramos. Céu
Nublado com Boas Abertas é tudo, no entanto, menos um romance “inocente”, é
de uma beleza extraordinária na dissecação e sugestão dos dias que se foram e
dos dias que são os nossos.
Céu Nublado com Boas Abertas dirige ainda as suas vozes polifónicas a outros diálogos
com a cultura popular (música e cinema) e erudita do mundo, não me
surpreendendo nada saber que na estante que provoca toda esta outra narrativa
está a Montanha Mágica, de Thomas Mann, que havia colocado o seu Hans
Castorp noutro sanatório europeu, também nas vésperas de uma grande guerra no
continente, e enquanto o seu vulnerável personagem tenta perceber o seu tempo e
a sua vida em circunstâncias colectivas semelhantes. Nuno Costa Santos presta
aqui uma outra homenagem a determinados escritores açorianos, mencionando
títulos de obras ou citando-os directamente nestas suas páginas. A consciência
de “arquipélago” – ironicamente não assim tão comum entre nós como se pensará –
está também demarcada não tanto pela presença destes seus autores como pela
origem de certas personagens do romance. Uma geração faz a cortesia a
outra, a nossa tradição literária perpetuada, renovada, contextualizada nos
vários tempos das nossas vidas, mesmo enquanto corta com ela numa espécie de
contra-narrativa. Na originalidade e eficácia destas páginas, ao comover e a
levar o leitor a repensar a sua própria história e a dos seus, a dos Açores e
do restante país, nunca esquecendo outras e bem mais distantes geografias das
nossas ligações ao mundo, recorda-nos como poucos de como a literatura açoriana
se tornou uma das vivas componentes da literatura açoriana se tornou uma das
vivas componentes da literatura portuguesa no seu todo. Se as antologias
canónicas ainda não deram por isso, poderiam começar por este romance. Que é
mais um publicado num grande editora nacional, também deveria significar
qualquer coisa, nunca lhe retirando especificidade dos seus referentes e
contextualização geral. Não vale a pena insinuar aqui comparações, ou dar mais
espaço a outros. Basta dizer
que nos últimos tempos o acto literário originário ou, directa ou
indirectamente, virados para as ilhas, é nada menos do que brilhante – para
quem quiser e souber apreciá-lo, em todas as suas implicações.
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Nuno
Costa Santos, Céu Nublado com Boas Abertas, Lisboa, Quetzal, 2016.
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