Flor
e Fúria, de Eleonora Marino Duarte
Amor e morte, amor mortal: se isso
não é toda a poesia, é, ao menos, tudo o que há de popular, tudo o que há de
universalmente emotivo em nossas literaturas; em nossas mais antigas lendas e
em nossas mais belas canções. O amor feliz não tem história. Só existem
romances do amor mortal, ou seja, do amor ameaçado e condenado pela própria
vida. O que o lirismo ocidental exalta não é o prazer dos sentidos nem a paz
fecunda do par amoroso. É menos o amor realizado que a paixão de amor. E paixão
significa sofrimento. Eis o fato fundamental.
ROUGEMONT,
Denis (1988), O Amor e o Ocidente.
Com um Prefácio de Fernando Pinto do
Amaral, Flor e Fúria, de Eleonora
Marino Duarte, apresenta-nos um alteridade para a narrativa do amor,
necessariamente dual, tal como a matriz da condição humana: «Amor/uma dose de
flor/uma dose de fúria/como a Criação». Como sabemos, o amor é um tema
transversal e recorrente na Literatura, ancestral na Literatura Portuguesa, uma
vez que logo o encontramos na Poesia Trovadoresca.
A poesia é o lugar da representação ou da
transfiguração da palavra, através da sua carga simbólica. Neste livro, o amor
está representado na flor, descrição metaforizada pela delicadeza, pela fragilidade,
pela inocência, pela suavidade e pela efemeridade comum a ambos- o amor e a
flor. As flores nascem, desamparadas, nos campos, nos canteiros, nas bermas dos
caminhos, e vivem indefesas perante a mão criminosa do ser humano, cuja
bestialidade leva a que as arranque do seu habitat, tornando-as naquilo que deseja
ver. Esse ser humano retiras-lhe o ar livre, o sumo da terra, o direito a
alimentarem-se da chuva, do sol, do ar, para as subjugar a um mundo por si
idealizado e criado. E a flor, sem voz, sem força anímica, deixa-se morrer. Tão
enfermo é às vezes o ser humano que até pinta as flores, depois de secas, para
ornamentos a seu gosto. E com o amor, não será tanta e tantas vezes assim? Por
isso é que o sujeito poético de Flor e
Fúria compara a inocência e a ingenuidade da flor aos «prados solitários da
infância» e, é por isso, também, que afirma: «Floresce em tempos cruéis/rodeada
de ira e ódio, crua/ num deserto de metáforas.»
Neste poema, o último da série «Flor», é definitivamente retirada a cortina
para revelar que essa «única flor possível», «volátil», «indomável», «bela» é o
«Amor», com A maiúsculo.
Ora, também remonta à nossa Poesia
Trovadoresca esse Amor divinizante, o Amor Total, anterior ou arquetípico- lugar
onde matéria e espírito se fundem para ascender ao lugar do Belo, do Amor
essência, que vive em «moinhos de pureza»: «Desde alguma Era e antes dela, como
névoa, / poeira de uma estrela que assim fosse nascer/ e antes de se inventar,
ainda antes. / / É tão antigo e anterior o amor que por ele sinto/…/ Amo-o como
se fosse eu a inventar o Amor.». É, pois, a apologia desse Amor, lugar de
ascese, que aqui se faz: «exalta ofegante o espírito, ao amar». Necessariamente, é a este Amor que se aspira:
terno, belo, envolvente, delicado, lugar do dia, por oposição à turbulência, à
severidade, à violência, ao frio, lugar da noite, chão da morte, que constitui
o universo poético da segunda parte do livro, denominada «fúria», alteridade de
eros ou de um pássaro «com as asas abertas em fúria.» (último verso do último
poema). Depois de um tempo de brisas suaves, de movimento, de exteriorização –
primeira parte do livro, intitulada «Flor» -, eis que surge este outro tempo,
agonizante, de estagnação e de interiorização, com a vida encarcerada
(«encarcerados os dias»), com o amor morto («secam as rosas»), com a noite a
colonizar o dia e a fazer emergir o amor com a minúsculo-lugar de eros: «Meus
pés e mãos, atados atos» - segunda parte do livro, intitulada «Fúria». A fúria
é a antítese da flor, do Amor, porque é lugar de «Invasão», de «cerco da
crueldade», de «ódio”, de «difamação», de um «corcel» ou de um «cavalo
selvagem», de um «obituário».
Ora, retomando a epígrafe de Denis de Roulement,
do que se fala neste livro é de um profundo sofrimento do sujeito criador, de
uma dor funda «aguda» e «antiga», pela ausência de um Amor Total e pela
vivência de eros, que cria apartamento: «Esperam notícias tuas/as sombras das
árvores postas no chão/ / Sacrificam-se por ti/ as rosas aprisionadas em
apartamentos». A propósito, as rosas são
as únicas flores nomeadas neste livro, não por acaso, uma vez que a rosa é o
símbolo do amor puro.
Num belíssimo ensaio de I K Centeno -
«A alquimia do amor» -, encontramos a mesma apologia do Amor, que é feita pelo
sujeito poético de «Flor e Fúria»: «A mulher que se vê-companheira, amante, ou
deusa iniciadora – é a projeção de um oposto a integrar nessa união superior a
que se aspira» (p. 23). É por isso que nestes poemas lemos «a alma benzida numa
luz amanhecida e única.» E ter essa luz é vivenciar esse Amor que agrega e, por
isso, é a via ascendente.
Este livro revela ainda uma consciência
poética própria de quem sabe o que é a poesia: há muito que a autora lê e diz
os poemas de muitos e muitos autores da nossa lusofonia. Esse contacto tão
íntimo com a poesia viabilizou-lhe uma voz pessoal, ciente que escrever um
poema não é rescrever: escrever poesia
é criar um alfabeto próprio, que serve o Belo na alteridade
onde é possível fazer coexistir opostos, pois apenas a poesia-pela sua
essência- possui a capacidade de juntar e fundir, e, ao fazê-lo, cria uma nova
dimensão, lugar de harmonia. Só assim é possível tornar o texto na alteridade
vivencial- rêverie- onde é possível
viver a utopia que se desejou para a vida. Esta é a função mágica da poesia.
Ângela de Almeida