quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Recensão dos Sonetos Completos de Antero de Quental - Expresso



SONETOS COMPLETOS
Antero de Quental

"Antero de Quental (1842-1891), figura mítica e romântica do Portugal oitocentista, filho e neto de liberais e de mãe muito religiosa, viveu quase sempre dividido entre esses dois mundos e disso deu conta em poemas, cartas e muitos outros textos. Num Portugal atrasado e pobre, ousou, pensou, combateu, amou, sempre com a mesma alta postura ética. Foi sobretudo um poeta. E como tal reconhecido por leitores alemães, espanhóis, russos, franceses, ingleses, italianos, suecos. A Livraria Artes & Letras, de Ponta Delgada, terra natal de Antero, quis assinalar o nascimento, a vida e a obra de um dos “Vencidos da Vida”, organizador das Conferências Democráticas do Casino Lisbonense, com a publicação desta cuidada edição dos “Sonetos Completos”. Para tal convidou Ana Maria Almeida Martins, especialista na obra do “poeta das ideias”, autora do prefácio, que recupera a edição de 1886, por respeitar integralmente o critério de Antero de Quental. A luz, paixão e fogo que vibram na poesia de Antero, mormente nos Sonetos, dão bem a medida de uma aspiração que o acompanhou no tempo que vai da redação à revisão e publicação dos mesmos, aspiração essa temperada por um filtro metafísico que eclode sistematicamente nos versos e os satura de uma mescla de sentir e pensar, de compulsão e contenção, como não podia deixar de ser num homem cujas características sempre foram essas mesmas, quer enquanto indivíduo introspetivo quer enquanto cidadão interventivo. Para o autor, os Sonetos constituíam uma espécie de autobiografia espiritual, o que terá induzido uns quantos a olhar para a sua poesia como um mapa dos seus tormentos existenciais, amorosos e outros, chegando mesmo a entender a reflexão metafísica e o pessimismo ali presentes como prenúncio do dia fatídico. Felizmente, outros tantos leitores assinalaram, também desde os primórdios, o quanto a poesia anteriana tem, como disse o correligionário Eça de Queirós, dessa “coisa estranha e rara – as dores de uma inteligência”. Uma inteligência dividida entre eros e tanatos. Uma poesia das coisas que se insinua, lenta e musical, no leitor. “Deixá-la ir, a vela, que arrojaram/ Os tufões pelo mar, na escuridade,/ Quando a noite surgiu da imensidade,/ Quando os ventos do Sul se levantaram…// Deixá-la ir, a alma lastimosa,/ Que perdeu fé e paz e confiança,/ À morte queda, à morte silenciosa…”. Razão tem por isso Eduardo Lourenço quando assinala que não há na nossa literatura poeta tão naturalmente universal como Antero. “É como se estivesse só no Universo, ilha pura, sem qualquer arquipélago.”"

CARLOS BESSA
in Expresso, Agosto 2016

quarta-feira, 17 de agosto de 2016


          Soneto 5 

          As horas que em terno ofício emolduraram
          Essa face gentil onde o olhar se demora
          Hão-de ser a tiranas de si mesmas, as horas,
          Como da fealdade que a perfeição supera.
          Pois não repousa o Tempo, antes guia o Verão
          Ao temível Inverno, para aí o lograr;
          A seiva enregelada, as folhas sem fulgor,
          Soterrada a beleza, e em vez, desolação.
          Assim, não fora a essência do Verão conservada,
          Líquida prisioneira entre vítreas paredes,
          O fruto da beleza por ela era roubado
          E nem memória havia de beleza que fosse.
             Mas a flor, no Inverno, perde só a aparência,
             Sobrevivendo, doce, o que lhe deu substância.

            31 Sonetos, William Shakespeare, Relógio d'Água, 2015